Ferrogrão

A ferrovia do genocídio indígena

13/03/2023 - O Globo

Por Doto Takak-Ire

Governo precisa urgentemente abandonar a Ferrogrão, que ameaça meio ambiente e os povos originários

Depois da tragédia humanitária nas comunidades ianomâmis, o Brasil corre o risco de testemunhar um novo atentado em territórios indígenas — desta vez afetando os povos mundurucu, panará, caiapó e outros do Parque Nacional do Xingu.

É exatamente esse o prognóstico caso saia do papel a Ferrogrão. Uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI) será julgada no dia 31 de maio pelo Supremo Tribunal Federal (STF), para definir se os limites da Floresta Nacional do Jamanxim, no Pará, poderiam ou não ter sido alterados, como foram, por medida provisória. Se tal alteração for considerada constitucional pela Suprema Corte, um pesadelo ressurgirá das cinzas.

O projeto de ferrovia de 933 quilômetros entre Sinop (MT) e Miritituba (PA) — que foi engendrado para escoar a produção do Centro-Oeste até a Bacia Amazônica — poderá levar a destruição da floresta a um nível irreversível, ameaçando a sobrevivência de 48 povos indígenas.

O projeto foi impulsionado no governo Temer, durante o qual foi editada a Medida Provisória 758/2016, convertida na Lei 13.452/2017, por meio da qual o então presidente alterou os limites do Jamanxim para viabilizar a ferrovia. Novo impulso veio no governo Bolsonaro, que tentou acelerar o andamento do projeto de forma não democrática, sem a devida participação das comunidades indígenas em audiências públicas, e desprezando as manifestações de entidades que denunciavam a violação de direitos indígenas e ambientais.

Felizmente, a sociedade civil e a comunidade internacional se mobilizaram, e o assunto foi parar no STF. Em março de 2021, o ministro Alexandre de Moraes acolheu pedido de liminar de uma ADI questionando a legalidade da Lei 13.452/2017. É quase um consenso entre juristas que a alteração dos limites da floresta jamais poderia ter sido deliberada via MP, sendo necessário para isso a apresentação, discussão e votação de um projeto de lei.

Enquanto o fatídico 31 de maio não chega, é inquietante que o presidente Lula não se posicione abertamente contra um projeto até outro dia defendido por diversos escalões do governo de Jair Bolsonaro, inclusive pelo próprio. E que membros da atual gestão deem declarações públicas sobre o interesse em retomar a Ferrogrão.

Do ponto de vista ambiental, a ferrovia é absolutamente indefensável. Segundo estudo do Centro de Sensoriamento Remoto da Universidade Federal de Minas Gerais, as obras aumentariam a contaminação por agrotóxicos e o desmatamento, e se estenderiam por uma dimensão muito maior do que os 10 quilômetros para cada lado que os bolsonaristas alegam. Esse mesmo estudo mostra que as obras poderão provocar a interrupção da conectividade do corredor ecológico do Xingu, com 26 milhões de hectares de florestas protegidos, e causaria perdas irreparáveis para o clima global. Outro estudo — da Climate Policy Initiative/Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro — revela que o custo estimado das emissões de carbono decorrentes do desmatamento é de US$ 1,9 bilhão.

A ministra dos Povos Indígenas do Brasil, Sonia Guajajara, e a presidente da Funai, Joenia Wapichana, também deveriam ser ouvidas. Em 2021, elas assinaram um artigo no jornal francês Le Monde, denunciando que as consultas obrigatórias às populações indígenas vinham sendo manipuladas, violando as normas da Organização Internacional do Trabalho e a Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas da ONU.

Não somos contra o desenvolvimento do Brasil. Mas a Ferrogrão poderá representar gravíssima catástrofe humanitária e ambiental, estimulando conflitos fundiários e aumentando a especulação imobiliária, o desmatamento ilegal e a grilagem. Com a recente tragédia em terras ianomâmis, a comunidade internacional está cada vez mais atenta à Amazônia. O Brasil não pode abrir uma nova página de terror contra seus povos originários.

* Doto Takak-Ire é líder caiapó e relações-públicas do Instituto Kabu