FICO


Água Boa não se preparou para o trem. E agora ?

24/11/2020 - Boamidia

Água Boa ganhou um trem, mas, hoje, não tem infraestrutura para assegurar o funcionamento do terminal de cargas que a Ferrovia de Integração do Centro-Oeste (FICO) necessitará. A cidade tem déficit habitacional, não trata seu esgoto, não tem meio para atender ao aumento da demanda da água, não conta com Corpo de Bombeiros, sua internet é precária, falta pronto-socorro, não há capacidade imediata para abrir vagas em creches e escolas. Enfim, o município vive a dualidade de uma grande conquista, que o assusta, pois para a qual não foi preparado. A estruturação terá que ser feita pelo prefeito eleito Mariano Kolankiewicz (MDB), com a participação do deputado estadual Dr. Eugênio – que é da cidade – bancada federal, governo estadual e a Câmara Municipal. A ferrovia é esperada desde 2007, mas os prefeitos nesse período, Maurício Tonhá e Mauro Rosa não a prepararam para a guinada econômica e social que acontecerá com a chegada dos trilhos. Essa é uma batata quente e o dilema na cidade, que em abril entrará em ebulição com o começo da obra ferroviária que a ligará à Ferrovia Norte-Sul, em Mara Rosa (GO).

Obra ferroviária no Brasil é sempre lenta, mas a FICO será construída em menos de quatro anos a contar de abril de 2021. Os trabalhos começarão por Mara Rosa, o que dá um certo fôlego a Água Boa. O trecho terá 383 quilômetros com 18 pontes, três viadutos e  e áreas de recuo – onde uma composição aguarda a passagem de outra em sentido contrário. Das pontes, duas são grandes: sobre o rio das Mortes e o Araguaia. Essa parte será de responsabilidade da Vale e foi orçada em R$ 4 bilhões. Porém o grupo que vencer a disputa pela concessão do transporte terá que construir a estrutura de embarque e desembarque nos extremos da ferrovia, em Água Boa e Mara Rosa.

Ponto central de embarque o terminal em Mato Grosso ditará o tamanho das instalações em Mara Rosa. Trem não trafega no segundo andar e as indústrias que alimentam seus vagões precisam de espaço . A prefeitura não tem reserva territorial urbana suficiente para transformar em distrito industrial e estação aduaneira do interior (porto seco) ao lado do ponto final dos trilhos. Esse gargalo exige articulação imediata de Mariano com a direção da Vale, para evitar que a conquista vire um nó sem ponta. Esse entendimento tem que ser amplo, com a participação de Dr. Eugênio; representantes do Ministério da Agricultura, governo estadual, Câmara Municipal,  Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegerais (Abiove),  Associação Brasileira de Frigoríficos (Abrafrigo), trades exportadoras, Associação Comercial e Empresarial (ACEAB), Federação das Indústrias (Fiemt), Federação do Comércio (Fecomércio) e a Federação da Agricultura e Pecuária (Famato).

Os dois terminais levam a FICO ao debate em Água Boa. Qual a oferta de commodities que a região terá para embarque? Haverá ou não perenidade nos carregamentos, com grãos e plumas das duas safras anuais? Há capacidade frigorífica instalada no raio de influência do terminal, para embarcar carne bovina e suína, e aves congeladas? Esse quesito infelizmente não foi discutido pelo prefeito Mauro Rosa, cujo mandato chega ao fim em dezembro. Mariano terá uma corrida contra o tempo, pois o trem não espera.

Na sede, Água Boa funcionam somente duas escolas estaduais (9 de Julho e Antônio Gröhs) e, uma, será transformada em Colégio Militar Tiradentes. Numa articulação junto ao vice-governador Otaviano Pivetta e o Comando Geral da Polícia Militar, Dr. Eugênio conseguiu essa unidade educacional. Mas, a rede pública, incluindo a municipal, não tem capacidade para atender ao grande fluxo populacional que acontecerá a partir de 2021. O município precisará, de imediato, no mínimo de mais uma escola municipal.

A limitação das escolas estaduais as obriga a manter em sala até 40 alunos, número esse bem acima dos 30, que é o teto aceitável. As creches funcionam abarrotadas de crianças e se limitam ao atendimento durante um turno nos dias úteis.

Vergonha! Uma cidade com 26.200 habitantes e sem Corpo de Bombeiros Militar. Essa é a situação em Água Boa. Recentemente um veículo foi consumido por fogo no pátio de um posto de combustível, e o incêndio somente não teve mais consequências por conta de um caminhão limpa fossa que lançou fezes sobre as labaredas.

Em caso de incêndio ou algum outro tipo de ocorrência atendida pelos Bombeiros, a unidade mais próxima é a de Nova Xavantina, distante 80 quilômetros.

O sistema de distribuição de água opera no limite. A cidade sequer tem rio nas imediações para fazer captação. O orçamento da prefeitura é executado ao fio da navalha e nem mesmo a Câmara Municipal sabe qual o grau de endividamento do município e quanto a amortização impacta na liquidez da receita.

Pronto-socorro não há nem para remédio, como diz o trocadilho. A cidade tem o Hospital Regional Paulo Alemão, que atende pacientes regulados pela saúde pública na região, mas não tem um PS para urgência e emergência dos moradores. Qual industrial se sentirá seguro em instalar uma planta numa cidade assim? O novo prefeito anuncia a criação de um programa chamado Água Boa hora de investir, que criará um ambiente negocial favorável, mas além dos incentivos fiscais é preciso oferecer qualidade de vida aos funcionários das indústrias e estrutura para que as mesmas operem em plena capacidade.

O déficit habitacional na cidade é pequeno, por conta das submoradias que levam filhos a morarem de favor na residência dos pais ou a construírem barracos em seus quintais. Há quase 20 anos o então governador Blairo Maggi e o à época prefeito Maurício Tonhá entregaram as últimas casas populares de Água Boa: 150. Desde então, nenhuma mais foi construída. Mariano anunciou que criará um programa habitacional municipal para zerar o déficit e assegurar moradias aos novos moradores.

O apito mais esperado no Coração do Brasil entra na contagem regressiva. Água Boa terá que correr muito pra não perder o trem. O problema para o prefeito eleito Mariano é bem complexo. É preciso planejar o município para o crescimento, isso num prazo que em algumas áreas estão além do limite temporal, e contando com um orçamento manga curta de R$ 117 milhões, cuja receita é estimativa, mas que terá que desembolsar R$ 33,4 milhões para a Educação e R$ 24,6 milhões para a Saúde.

Com um orçamento  que não deixa margem para investimento, Água Boa precisará permanentemente da atuação de seu deputado Dr. Eugênio para canalizar recursos para execução de obras e projetos sob pena do engessamento do município descarrilar o sonhado trem.
 
O sonho com o trem

O sonho começou em 2007, quando o então presidente Lula da Silva lançou o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) que previa investimentos de R$ 503,9 bilhões até 2010, em cinco blocos de ação, sendo que o primeiro era voltado para o transporte, com um segmento ferroviário que incluía a FICO.

Água Boa ficou de orelhas em pé. Estava escrito que o trem apitaria no centro geodésico do Brasil. O sonho começava e o calendário avançava. Em 2007 nada, 2008 e 2009 também, neca de pitibiriba. Mas todos sonhavam.

Em 29 de março de 2010, com Dilma Rousseff (pré) candidatíssima a presidente – ela insistia na palavra presidenta. Lula lançou o PAC-2, que teria R$ 1,59 trilhão para sacudir o Brasil. Dessa montanha de dinheiro, sairiam os recursos destinados ao setor ferroviário – expansão e restauração da malha. Água Boa intensificou o sonho com o trem.

Parecia que Água Boa entraria nos trilhos. Tanto parecia que na sexta-feira, 16 de abril de 2010, portanto 48 dias após o lançamento do PAC-2 a cidade foi palco de uma audiência pública para debater a FICO. A audiência  contou com a presença do governador Silval Barbosa que fazia sua primeira viagem ao Vale do Araguaia após assumir o governo em 31 de março daquele ano. A figura central foi o ministro dos Transportes, Paulo Sérgio Passos secundado pelo presidente do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), Luiz Antônio Pagot; o presidente da Valec – estatal vinculada ao Ministério dos Transportes – José Francisco das Neves, o Juquinha; o ex-governador Blairo Maggi; o à época deputado federal Wellington Fagundes; e o prefeito anfitrião Maurício Tonhá. Discursos foram muitos. Além deles, generosamente a Câmara concedeu o Título de Cidadão Agua-boense ao ministro Paulo Sérgio.

Juquinha estipulou prazo até o final de 2012 para os trilhos chegarem à cidade e garantiu a existência de recursos para tanto. Juquinha acrescentou que a FICO seria parte da Ferrovia Transcontinental, com 4.400 quilômetros ligando o Rio de Janeiro a Boqueirão da Esperança, no Acre, na divisa com o Peru. A Transcontinental, também seria contemplada com recursos do PAC-2.

A obra não saiu do papel e Juquinha passou alguns dias trancafiado numa cela por suspeita de trambiques para levar vantagem com a obra da ferrovia Norte-Sul. O xilindró não foi o único revés sofrido por ele: ganhou bilhete azul na Valec e responde a um desses processos que tramitam lentos.

Em outubro de 2010 Dilma venceu a eleição para presidente (ou presidenta – vá lá), A Transcontinental saiu de cena, mas a FICO, não: ficou tanto nos planos do governo federal quanto nos sonhos em Água Boa.

Nasce a PPP

Com Dilma o projeto da FICO hibernou até a segunda-feira, 2 de julho de 2018, quando três ministros anunciaram um plano de investimento em transporte ferroviário por meio de Parcerias Público-Privadas (PPP) com duas prioridades: a Ferrovia de Integração do Centro-Oeste (FICO) e o Ferroanel de São Paulo. Esse anúncio foi recebido com cautela, porque em outros formatos foi apresentado antes, e 2018 era ano eleitoral.

Os ministros Valter Casimiro (Transportes) e Ronaldo Fonseca (Secretaria-Geral da Presidência) juntamente com o secretário especial do Programa de Parcerias e Investimentos (PPI), Adalberto Vasconcelos, anunciaram que o trecho de 383 quilômetros entre Campinorte (GO) e Água Boa via Cocalinho seria construído pela mineradora Vale, ao custo de R$ 4 bilhões. A Vale seria compensada com as concessões das ferrovias do Carajás (Pará e Maranhão) e Vitória-Minas (Minas Gerais e Espírito Santo) até 2057 – o contrato em vigor terminaria em 2027.

Depois de construir a FICO  a Vale a devolveria à União, que licitaria sua linha ao setor privado, com outorga a ser definida. Esse projeto sofreu alteração parcial de rota. Ao invés da FICO se contectar com a Norte-Sul em Campinorte, o fará em Mara Rosa, para evitar um trecho acidentado.

AMPLITUDE – O projeto da FICO prevê a construção de 1.641 quilômetros ligando Mara Rosa a Rondônia via Água Boa e outras cidades mato-grossenses. É praticamente a mesma extensão da Ferrovia Rumo ALL que liga Rondonópolis ao porto de Santos, com terminais intermediários.

O restante da FICO, entre Água Boa e Rondônia, com 1.200 quilômetros sequer é discutido pelo governo.  Quanto ao Ferroanel, a empresa MRS Logística ganhaou a renovação de várias ferrovias em troca de sua obra, com 53 quilômetros. O tráfego ferroviário nesse trajeto é compartilhado pelos trens de carga (inclusive os da Rumo ALL que escoam commodities agrícolas de Mato Grosso) com as linhas da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) que transportam passageiros na região metropolitana de São Paulo.

Resumo

A construção da FICO é resultado de uma costura administrativa. A Vale ganhou a prorrogação por 30 anos de duas concessões ferroviárias que terminariam em 2027: da Ferrovia Vitoria-Minas (de Itabira/MG ao porto no Espírito Santo) e da Carajás, no Pará e Maranhão, por onde se escoa minério de ferro de Carajás para o porto em São Luís, no Maranhão – ambas transportam passageiros.

A construção da FICO entre Água Boa e Mara Rosa está burocraticamente chancelada pelo Ibama e a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). Seu projeto básico  foi concluído e o projeto executivo se encontra em fase final, sem que isso impeça o começo da obra. Sobre o restante do trajeto, de Água Boa a Rondônia, somente Deus sabe.

O último obstáculo para a obra da FICO seria o Tribunal de Contas da União (TCU), caso o mesmo barrasse a renovação antecipada das duas concessões da Vale. No entanto, em 29 de julho deste 2020, o TCU deu aval para tanto, fez recomendações à Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) , mas não criou obstáculos à prorrogação contratual.

Em suma: o trem saiu da curva do tempo e se aproxima. Que Água Boa possa recebê-lo, apesar da apatia da prefeitura que não se interessou, não planejou  nem se mobilizou para criar a infraestrutura para tanto. Que a soma do planejamento com trabalho e o bom jeitinho brasileiro o mantenha nos trilhos.

Eduardo Gomes, Boamidia.