Malha ferroviária brasileira diminui quase dois terços após privatização

08/06/2013 - Monitor Mercantil

Os investimentos não deslancham e o preço do frete, cuja média costuma ser inferior em 30% aos custos do transporte rodoviário, no Brasil chegou a superar em 110%

Rogério Lessa

Desde 1997, quando foi privatizada, a malha ferroviária brasileira foi reduzida em dois terços, passando de 28 mil km de extensão para os atuais 10 mil km. Os investimentos não deslancham e o preço do frete, cuja média costuma ser inferior em 30% aos custos do transporte rodoviário, no Brasil chegou a superar em 110% aquele cobrado pelos caminhoneiros, já incluído o preço do frete.

As informações são do advogado Samuel Gomes, ex-presidente da Estrada de Ferro Paraná Oeste S.A (Ferroeste, estatal paranaense) e membro da Rede de Especialistas Íbero-americana em Infra-estrutura e Transportes (Rei). Por este motivo, ele avalia que está enganado quem acredita que a privatização dos portos vai trazer investimentos para o setor e reduzir o chamado "custo Brasil". Na opinião do especialista, o Brasil vive momento semelhante ao do século XIX, quando os ingleses dominavam amplamente o transporte de cargas no país.

Quanto aos ganhos de produtividade, Gomes salienta que o modelo adotado para os portos privilegiará os cartéis de armadores, que terão poder para impor o preço do frete, apropriando-se, assim, dos ganhos de produtividade. "Ao abrir as portas para os cartéis internacionais, pode se dizer que a nova legislação portuária é desnacionalizante, afeta a soberania nacional e cria confusão quanto ao marco regulatório", critica, nesta entrevista exclusiva ao MONITOR MERCANTIL.

A Medida Provisória (MP) 595/2012, chamada MP dos Portos, sancionada pela presidente Dilma Rousseff, vai diminuir o Custo Brasil?
Não creio. Nenhum grande porto do mundo funciona nesse modelo. O Brasil quer inovar sem nenhuma referência à experiência dos principais portos, que passaram por um longo período de amadu-recimento. Um dos piores defeitos da MP é a possibilidade de os armadores se tornarem concessionários. Eles já dominam o frete no mundo e, ao controlarem vários elos da cadeia, poderão alterar os componentes dos custos. Além disso, estarão livres para determinar os portos que serão utilizados por exportadores e importadores.

Como é o modelo consolidado nos portos mais desenvolvidos?

O porto é público e as atividades em torno dele, bem como toda a movimentação de carga, é feita pelo setor privado, mas com regulação. No Brasil querem construir portos de propriedade privada, o que já impõe uma desvantagem aos operadores privados de portos públicos. A MP criou uma desordem, pois há vários sistemas funcionando simultaneamente, de maneira desagregadora. Ficou claro que o governo correu para evitar que o Tribunal de Contas da União (TCU) consolidasse um parecer técnico que decretaria ilegalidade na operação em alguns portos privados, como Navegantes (SC) e outros, que, por serem privados, transportam sem licitação carga de terceiros. E movimentar carga de terceiros é um serviço público.

Com as privatizações de ferrovias e rodovias houve aumento de investimentos e redução do preço dos fretes?

Não. Em 1997, quando esse processo começou, havia 28 mil km de ferrovias no Brasil. Com a privatização essa extensão foi reduzida praticamente em dois terços, encolhendo para 10 mil km em apenas 15 anos. Isto equivale ao estrago de uma guerra. Não há como medir o quanto isso custa ao país. Há trechos irrecuperáveis e a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) tem assisti-do de braços cruzados.

Houve algum ganho de competitividade?

O que estabelece a competitividade nesses casos é a escala, aumento da capacidade de transportes. E isto, quando se trata de portos e ferrovias, não se obtém por competição e sim com grandes investimentos. Mas a empresa estatal Engenharia, Construções e Ferrovias S/A (Valec), por exemplo, não consegue construir ferrovias porque as empreiteiras não querem ou não se interessam. Desqualificam o projeto, param as obras, e aí o custo dispara.

O custo das parcerias público-privadas tem subido muito acima do custo básico da construção civil no Brasil. Não era para ser o contrário?

Há um discurso legitimador das PPPs baseado na idéia de que o Estado não tem dinheiro e o capital privado, sim. Mas agora é o BNDES quem financia ou repassa dinheiro aos bancos privados que estes se associem com empreiteiras para fazer ferrovias. Em tese, a capacidade de produção (transporte) será explorada pelos construtores-investidores e se estabelece um preço de frete para retorno do investimento. Mas no Brasil o capital quer dinheiro público para fazer a ferrovia e, embora não necessariamente vá operá-la, ter receita proporcional à capacidade de produção, mesmo que a carga transportada seja menor. Esta é a lógica da separação entre a construção de infra-estrutura e a operação. Para construir 10 mil km de ferrovias os investidores querem subsídios da ordem de R$ 30 bilhões, aval do Tesouro e garantia de aporte de recursos orçamentários caso a rentabilidade não seja a esperada. É o chamado "risco governo".

Poderia explicar melhor?

Além das garantias, os investidores querem leis exigindo o pagamento, caso a sociedade se revolte contra os resultados da privatização. E com os preços das ferrovias explodindo, o preço do frete vai ficar muito caro. E quem fica sem garantia é a infra-estrutura do país. Não há outro exemplo no mundo.

Como são aprovados marcos regulatórios dessa natureza?
O país perdeu massa crítica – engenheiros, centros de pesquisa. Hoje qualquer um com um pouco de iniciativa pode apresentar projetos que se transformam em políticas de governo sem que haja um trabalho sério por trás.

Como países bem sucedidos tratam essa questão?

Na China, além de exército, marinha e aeronáutica, havia uma quarta força militar, independente, composta por um corpo de engenheiros que hoje deram origem à empresa que cuida das ferrovias no país. O setor é pensado de maneira tão estratégica que, além de movimentação de cargas e pessoas, há previsão até para o transporte de tropas. Ou seja, o planejamento dos transportes está subordi-nado a uma estratégia nacional. No Brasil estamos tristes por não haver um projeto nacional para os transportes. Houve na verdade uma destruição da inteligência, algo que levaremos décadas para reconstruir. Houve, inclusive, um processo de captura dos técnicos da estatais.

Apesar do encolhimento da malha ferroviária, ao menos os preço do frete por transportes através de trens diminuiu?

Não. Os contratos exigem apenas o cumprimento de metas genéricas de transporte e as concessionárias utilizam os trechos mais rentáveis. Assim, o preço do frete, que, em média, costuma ser 30% inferior ao do frete rodoviário, chegou a superar em 110% o do transporte por caminhões. Vale lembrar que quando usamos o caminhão como referência estamos incluindo o preço do pedágio no custo do transporte rodoviário. Na verdade, estamos vivendo período semelhante ao do século XIX, quando os ingleses dominavam o transporte no país.

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Fonte: Monitor Mercantil