07/10/2010 - O Estado de São Paulo - Dias Lopes
Filé arcesp era a estrela do cardápio dos trens da Companhia Paulista de Estradas de Ferro
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Os paulistas de duas gerações atrás recordam com saudade das viagens de trem que realizavam da capital para o interior e vice-versa. Ainda guardam na memória o conforto dos vagões de passageiros e a qualidade dos serviços. Além disso, recordam da pontualidade dos trens - podiam acertar os relógios quando eles entravam na estação. Referimo-nos especificamente aos trens da Companhia Paulista de Estradas de Ferro, fundada em 1894 por fazendeiros e investidores para escoar o café plantado no Estado e facilitar a circulação das pessoas. Saíam da Estação da Luz e paravam em diversas cidades. O primeiro trecho da linha tronco, inaugurado em 1872, ligou Jundiaí a Campinas. Estatizada em 1961, dez anos depois a Companhia Paulista foi incorporada pela também governamental Fepasa. Sua extinção coincidiu com o desinteresse nacional pelo transporte ferroviário. Ignorando as lições da Europa e de outros lugares, onde os trens circulam até hoje rentáveis e modernos, decretamos sua morte. Foram considerados deficitários e ultrapassados. Ao Brasil "moderno" convinha privilegiar o transporte rodoviário.
Uma das lembranças mais fortes dos paulistas se refere ao Trem Azul, cujo nível de qualidade ainda não foi igualado no Brasil. O carro de elite Pullman, que transportava os passageiros abonados, era construído de aço de chapa dupla, a fim de eliminar o ruído externo. Tinha poltronas giratórias, luminárias individuais, janelas panorâmicas retangulares e ar condicionado, uma exclusividade na época. A Companhia Paulista o incorporou em 1928, quando trouxe dos Estados Unidos três vagões iguais, dotados desses luxos. Todos vieram montados, devido à complexidade técnica e às inovações apresentadas. Até hoje os ônibus do transporte rodoviário em São Paulo não superaram o luxo dos carros Pullman. É possível compará-los à classe executiva dos aviões de carreira. Também existiam os carros da primeira e segunda classe, igualmente confortáveis, o carro leito e o carro restaurante, no qual os homens não entravam sem paletó e onde a estrela do cardápio era o filé arcesp.
O jornalista e escritor Inácio de Loyola, natural de Araraquara, que muito viajou nos trens da Companhia Paulista, sugere que o prato seja considerado "comida tradicional de São Paulo". Nada mais justo. A receita nasceu e se consagrou nos trilhos do Estado. "Era um bife muito grande, com tomate, cebola, e vinha acompanhado de arroz", descreve Loyola. "Até hoje lembro do aroma." O prato surgiu para alimentar passageiros especiais: os viajantes comerciais, que consideravam caro o cardápio do trem. Portanto, tinha preço em conta. Logo conquistou a clientela toda. O nome arcesp veio da Associação dos Representantes Comerciais do Estado de São Paulo. A receita original se extraviou. Mas se pode reconstituí-la com os testemunhos nostálgicos dos antigos viajantes.
O filé arcesp tem parentesco com o bife que inúmeros brasileiros saboreiam em casa todos os dias. Entretanto, é preparado com filé mignon, uma carne diferenciada e particularmente macia, pois procede de um músculo que o boi não movimenta ao se locomover. Primeiro é frito na manteiga, sendo retirado da frigideira ao alcançar o ponto desejado. Vai para um recipiente mantido em local aquecido, para não esfriar. Então, a frigideira volta ao fogo só com rodelas de cebola. A seguir, recebe cenoura, batata, ervilha e tomate. Por último, o filé retorna à frigideira para incorporar o sabor do molho. Preparado assim, assemelha-se ao dos trens. Só não fica igual por falta de um ingrediente hoje impossível de encontrar: os trens da Companhia Paulista.
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