Um barato de 664 km sobre trilhos


7/6/2010
O Globo

A doméstica Marinilda de Jesus Rosa, de 31 anos, pega pelo menos duas vezes por mês o trem de passageiros da Estrada de Ferro Vitória-Minas (EFVM) na cidade de Baixo Guandu, no Espírito Santo, onde mora sua família, até Belo Horizonte, onde trabalha. Vai geralmente passar o fim de semana em Minas Gerais. Na segunda-feira da semana passada, ela e a sobrinha Keila de Jesus Cândido, de 19 anos, faziam o trajeto BH-Baixo Guandu e conversavam no vagão-restaurante do trem. Keila foi convencida pela tia a tentar a vida como vendedora em Minas Gerais.
     
- O trem vale muito a pena porque é seguro, confortável e mais barato no trecho que eu faço, em comparação com o ônibus, duas vezes mais caro. A rodovia é perigosa e o transporte, caro. Se a gente ainda tivesse carro...
- diz Marinilda.
     
O depoimento da doméstica ilustra com perfeição a realidade da EFVM, a maior e mais densa estrada de ferro de passageiros do Brasil.
     
A EFVM e a Estrada de Ferro Carajás (EFC), as duas administradas pela Vale, são hoje as duas únicas ferrovias que fazem transporte regular de passageiros no país. A EFVM, nas mãos da Vale desde a década de 40, transportou 980 mil pessoas em 2009, o que, segundo Regivan Silva, gerente de Suporte Regional e Trem de Passageiros da Vale, significa um movimento diário de cerca de 2.500 pessoas, nas baixas temporadas, e cerca de seis mil, nas altas.
     
O movimento já foi maior. Em 2006, por exemplo, o trem transportou 1,14 milhão de pessoas. A Vale não tem um estudo preciso sobre esta redução de passageiros (na EFC, o transporte continua crescendo), mas Regivam tem uma pista: - Pelo que eu converso com os passageiros e venho observando no setor de ferrovias, a emergência econômica das classes mais baixas fez aumentar a compra de carros populares.
     
E mesmo com a BR-381 (BHVitória) sendo uma das rodovias mais perigosas e em mau estado do país, as pessoas arriscam dirigir em seus carros novos - diz ele.
     
O que não diminui a importância da Ferrovia Vitória-Minas que, aos 106 anos, é a mais antiga ferrovia de passageiro em operação. Afinal, com extensão de 664 quilômetros, preços que variam de R$ 10 (BH-Barão de Cocais, 71 quilômetros de distância) a R$ 49 (BH-Vitória) na classe econômica, e de R$ 19 (BH-Barão de Cocais) a R$ 75 (BH-Vitória) na classe executiva, o trem é o transporte mais barato e popular para os habitantes da região.
 

Ônibus custa o dobro e BR tem 500 mortes
     
São 30 paradas de aproximadamente três minutos cada (17 estações de trem e 13 pequenos postos em 30 municípios). Especialmente entre pequenas cidades do interior de Minas e do Espírito Santo, por vezes a ferrovia é a única opção de deslocamento.
     
- A viagem de trem é acessível e mais segura do que ir de carro, especialmente com criança de colo - diz Maria Penha, que com a filha Hema e a neta Maria Eduarda, de um ano e três meses, embarcaram em Ipatinga, em Minas, com destino a Vitória. - O tempo de viagem é muito longo, mas as opções de transporte acessíveis são poucas, né? A gente tem que contar com o trem.
     
A viagem completa na EFVM leva 13 horas de BH a Vitória (e um pouco menos no sentido contrário), ainda que os trens de carga na linha - a maioria transportando minério de ferro das minas da Vale até o porto de Tubarão - sejam obrigados a parar para dar lugar ao trem de passageiros.
     
De ônibus, a duração do trajeto cai para sete horas, mas o preço sobe para R$ 80, na classe econômica, ou cem reais nos poucos veículos com classe executiva. Com um agravante: não é à toa que a BR-381 é conhecida também como "rodovia da morte". Por ano, são cerca de 500 mortes e milhares de feridos em acidentes de trânsito.
     
- Eu viajo de trem com minha família porque é mais relaxante e seguro - afirma Carlos Antonio Gaviorno, funcionário da Vale no Porto de Tubarão, que viaja ao menos três vezes por ano com a mulher e os dois filhos no trem.
 

Histórias até de parto dentro do trem
     
Os funcionários da Vale, aliás, representam 5% do movimento de passageiros da ferrovia, considerada a mais produtiva do país porque, além dos passageiros, por ela são transportados 115 milhões de toneladas de minério de ferro por ano.
     
Isso representa 40% de toda a carga transportada por ferrovias no Brasil.
     
Segundo pesquisa do Instituto Vox Populi feita em 2008, 80% dos passageiros possuem renda até cinco salários mínimos, 40% têm o ensino fundamental e outros 40% o ensino médio, 66% viajam a lazer, turismo ou para visitar parentes, enquanto 11% viajam para cuidar da saúde em cidades maiores do trajeto.
     
E uma curiosidade: 60% dos passageiros são mineiros.
     
- Os mineiros adoram esta ferrovia, que nasceu em Vitória, mas acabou consolidando o transporte na região leste do estado - diz Fernando Rodrigo, de 31 anos, chefe do trem de passageiros, responsável final pela ordem, segurança, operação e limpeza da composição dos 15 vagões. Rodrigo trabalha há seis anos na EFVM e dez no setor ferroviário da Vale e tem muitas histórias da ferrovia para contar. Há um ano, por exemplo, o trem havia acabado de deixar a estação de Governador Valadares (no meio do caminho da ferrovia) quando uma passageira reclamou de dores no peito.
     
- Ela tinha pressão muito baixa, estava fria, suava muito e desmaiava a todo momento. Eu fiz massagem cardíaca e avisei ao trem que subia para Belo Horizonte que ele precisava parar quando os trens se cruzassem para que pudéssemos trocála de trem e mandarmos a passageira para um hospital grande em Valadares.
     
- conta Fernando. A estratégia deu certo e a passageira Elza Dorigati sobreviveu a um infarto.
     
- Toda a vez que eu a encontro no trem é uma festa - diz ele. Outra vez, a equipe de 20 pessoas que trabalha em cada composição - entre zeladores, maquinistas, chefes, seguranças e pessoal de restaurante - foi obrigada a fazer um parto no trem em movimento. Mas a história mais engraçada ocorreu mesmo há alguns meses, quando um passageiro deixou num dos vagões especiais uma caixa lacrada de abelhas. Quando alguns insetos pareciam ter saído da caixa, Fernando foi ao sistema de som do trem e chamou o dono, cujo nome ele não se lembrava: - Eu falei: "gostaríamos de solicitar a presença, no vagão de controle, do passageiro louro, alto e com uma tatuagem no braço que é dono do carregamento de abelhas". E não é que apareceram três comissárias entusiasmadíssimas para ver quem era aquele louro, alto e tatuado? - lembra Fernando, às gargalhadas.